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Após uma negociação que se arrastou por meses, atravessou as férias e voltou com a retomada da temporada da Sinfônica de Campinas, o maestro Karl Martin aceitou conceder entrevista ao Caderno C.
Em uma primeira pauta enviada por meio de funcionários da orquestra, afirmou que não era de seu interesse responder a perguntas que não fossem artísticas. Após uma entrevista a esta repórter a respeito de um concerto específico, Karl finalmente foi convencido da necessidade de termos uma entrevista com ele, que atua na Sinfônica periodicamente há quatro anos. A condição, porém, era que não fossem feitas perguntas de cunho político.
O regente suíço, principal convidado da Sinfônica, recebeu a reportagem após um ensaio da semana passada e, com o passar do tempo, se sentiu mais à vontade para falar abertamente sobre sua vida, carreira e ideias.
O que se lerá a seguir é a entrevista de um homem que não se cansa de estudar, que passa as tardes lendo partituras no teatro interno do Centro de Convivência e cujo objetivo é impor desafios a ele mesmo e às orquestras que rege, dando espaço importante a obras contemporâneas.
Agência Anhanguera - Como, ainda na infância, você descobriu vocação pela música erudita?
Karl Martin - Meu pai era um excelente violinista, mas não queria que eu e meus dois irmãos seguíssemos carreira artística. E eu sempre tive vontade de fazer música. Meu pai queria que eu tivesse uma profissão séria. Então eu fiz uma faculdade de germanística (uma vertente da filosofia alemã), mostrei o diploma ao meu pai e depois fui fazer o que queria.
Como se deu sua caminhada até se tornar regente?
Demorou. Antes disso, eu fui um bom flautista, profissão que me rendeu muitos prêmios. Toquei em boas orquestras. Meu primeiro concerto como solista foi aos 17 anos, em Berlim. Depois de alguns anos, senti necessidade de fazer a música que queria porque a flauta é um instrumento simples. Não tem um grande repertório. Então, fiz exame de admissão na Academia de Milão, onde estudei regência. O fato de ter sido um flautista conhecido ajudou um pouco, não muito. Depois de formado, tive de escolher entre um repertório mais conhecido para orquestras menores, ou músicas contemporâneas para orquestras conceituadas em Viena, Milão, Londres, Berlim. Escolhi a segunda opção e isso foi muito bom. Anos depois tive a oportunidade de criar uma orquestra, a Orquestra da RAI (rede estatal italiana de comunicação). Fui diretor musical da Ópera de Palermo. E fiz, em 20 anos, um trabalho extremamente importante, com orquestras, audições, criação de repertórios. Fui regente principal por 20 anos, diretor musical. Isso significa que eu tinha apenas quatro meses para fazer outras coisas. Neste período eu viajava muito, passava seis, sete semanas longe de casa.
O senhor é casado? Tem filhos?
Não tenho filhos, mas sou casado. Ela fica na Itália e também é musicista. Tem uma carreira bem agitada, viaja muito. Muitas vezes, cada um está em um lugar.
Ainda tem alguma ligação com a Ópera de Palermo?
Eu voltei para lá duas vezes, mas fechei um ciclo com o trabalho. Foi como deixar um filho. Foi mais fácil porque começou a haver muita intervenção política e não era essa a minha concepção.
O senhor não gosta muito de política, né?
Sei que existe, que é necessária, mas gosto de manter a minha autonomia artística. E foi mais fácil largar o projeto quando a política falou mais alto.
O seu caminho é na contramão, iniciando na Europa e agora se ligando ao Brasil...
O Brasil é um prazer. Um hobby. Comecei a conversar com amigos brasileiros na Itália e foi possível ser convidado para tocar no Theatro Municipal de São Paulo na década de 80. Depois fui convidado a tocar em Manaus, Belém do Pará, no Theatro da Paz, e fiz muitos amigos.
E Campinas, como entrou na sua vida?
Fui convidado pelo Cláudio Cruz para tocar aqui e gostei porque é uma cidade menor do que São Paulo, aquela loucura toda. Fui convidado a tocar mais aqui, mas foi difícil no começo, porque as agendas não batiam.
Está nos seus planos passar um tempo maior aqui?
Não. Serão três vezes ao ano, mesmo. Este primeiro período foi mais longo porque trabalhamos duas semanas antes da volta das férias para desenferrujar. Mas depois as minhas vindas serão mais breves. Talvez eu venha uma vez mais, porque existe um projeto de viajar para o Nordeste com a orquestra, mas não está nada confirmado.
Como imaginava o Brasil antes de vir pra cá?
Boa pergunta. Eu conheci a Argentina, a Colômbia antes de vir para cá. Mas o Brasil é uma incógnita. Conhecendo brasileiros antes, já dava para saber que haveria alegria, dança, samba, essas coisas, mas vejo agora que não é o Brasil. É também o Brasil. Me lembro bem de quando cheguei a São Paulo. O primeiro impacto foi muito, muito bom. Me lembro que saí para caminhar pelas ruas e ficava olhando as pessoas. É muito interessante essa mistura étnica. Depois eu consegui entender que as raças se misturam, mas as classes não. O segundo impacto foi ver gente dormindo e morando na rua. Na Europa existe, mas não tanto. Em Tóquio tem bastante de uns tempos para cá e os mendigos fazem casas de papelão.
Ouve música brasileira quando está aqui?
Eu já conhecia Tom Jobim, bossa nova. Gosto muito do trabalho do Gilberto Gil. Tenho até discos dele.
Tem alguma diferença entre o Karl Martin antes do Brasil e depois do Brasil?
Estar aqui me despertou uma curiosidade de conhecer jovens compositores brasileiros. Mas noto que quase tudo que tem nas minhas mãos é ligado ao passado. Quando converso com os músicos, digo que a pessoa é jovem, que deve fazer algo totalmente novo, sem esquecer o passado, mas ele não precisa estar presente em notas nas músicas, mas nas influências. Em Buenos Aires, por outro lado, os compositores conseguem colocar algo do tango nas composições de forma totalmente nova.
Muitos jovens compositores te procuram para mostrar o trabalho?
Geralmente, compositores e músicos já formados me procuram eu vejo e comento, mas o meu interesse está nos jovens talentos mesmo.
O senhor tem consciência de que é uma exceção? Os maestros geralmente não são muito abertos...
Infelizmente é verdade a sua afirmação. Também costumam ter preconceito com peças modernas e quase não as ensaiam antes das apresentações ou não dão a elas muita atenção. A preparação da orquestra ajuda o compositor a escutar bem a sua composição, ajuda a orquestra a abrir a cabeça para tocar coisas novas, acordes diferentes. E também leva o público acostumado a ouvir novidades e a sentir o impacto. Eu não falo bem o português, por isso não faço isso aqui, mas na Europa, muitas vezes explico o que está sendo tocado. É muito interessante ver a reação do público.
Como o senhor avalia o público brasileiro?
É um público caloroso, interessado. Infelizmente não tenho muito a possibilidade de conversar.
Mas o público de lá está mais acostumado com a música erudita...
Mas aqui há mais possibilidade de escutar música contemporânea. Este público escuta somente música erudita. Eu não gosto desse público fechado, como tem na Europa, que só ouve determinado período... Toda a música precisa ser ouvida.
O fato de ter viajado muito abriu mais sua cabeça para a música?
Sim, mas eu sempre quis o novo. Qualquer profissão pode ser melhor desempenhada quando se está aberto para as novidades.
Qual é seu desafio como maestro?
Eu gosto de variar e de abrir a cabeça dos músicos e do público, mas sem pretensão de ser professor. Quero fazer o melhor possível para agradar. Por isso, não canso de estudar. O maestro tem sempre que saber mais do que os músicos e solistas com quem se apresenta.
E os egos? Causam muito atrito no meio?
Acho que o ego tem que fazer parte do artista. O ego artístico é bom porque pode causar uma mudança de opiniões. Mas o ego pessoal, aquele que torna a pessoa antissocial, não me interessa. O ego construtivista é importante, recebo com prazer.
E quando o senhor volta para a Europa o que faz? Toca em outras orquestras ou tira férias?
Imagine (risos), com o dinheiro que recebo aqui não dá para viver. Preciso trabalhar na Europa. Aqui é hobby, praticamente, mas faço com muito prazer. Por exemplo, na semana de Páscoa tenho dois ensaios e no domingo e segunda, tenho apresentações da Paixão de Cristo em Roma. Esta orquestra, chamada Roma Sinfonietta, só precisa de dois dias de ensaios porque é formada pelos melhores solistas da Europa, o pessoal de Viena, do Scala de Milão etc. Com esta orquestra, fazemos duas apresentações por mês.
E o senhor é sempre o regente?
Não sempre. Temos vários convidados. Só rejo as apresentações maiores e mais importantes.
De quantas outras orquestras o senhor faz o programa?
Eu faço desta aqui, da Sinfonietta, e os programas das minhas apresentações das orquestras pelo mundo - Europa e Japão.
O senhor tem vontade de ensinar música para populações mais carentes?
Eu admiro muito alguns músicos daqui que se envolvem com projetos. Vira e mexe, eu pergunto a eles sobre isso. Eu acho muito interessante e acho que a música realmente tira as crianças de ambientes hostis e perigosos. Eu gostaria muito de criar uma orquestra jovem.
Segundo fontes daqui da Sinfônica me disseram, o senhor conseguiu conquistar a simpatia dos músicos. Tem consciência disso?
Não sei falar de outros regentes, mas sei que quando estou aqui, estou trabalhando. Trabalho aqui como em qualquer outra orquestra do mundo e eles respondem bem.
O senhor está desenvolvendo um trabalho de planejamento com a orquestra?
Sim. Todos os meus programas são pensados. Penso sempre em estilos diferentes, obras boas, mudança de repertório - não só tocar o que se conhece, mas outras coisas. Gosto de repetir obras depois de anos, para que os músicos possam relembrar o trabalho realizado.
A abertura do concurso de novos músicos ajudaria o senhor a desenvolver melhor o seu trabalho?
Sim, porque com uma orquestra inteira, sólida, posso realizar este trabalho de comparar sonoridades. Hoje em dia não posso cobrar isso deles se cada vez vem alguns músicos contratados tocarem. Claro que o grupo principal é o mesmo, mas não tem como a gente avaliar se o grupo melhorou ou piorou.
Tem uma diferença muito grande na sonoridade das orquestras brasileiras e da Europa?
Sim. Muita. Felizmente não é sempre uma razão artística. Oitenta por cento é em relação à menor qualidade dos instrumentos. As cordas, os materiais. As cordas americanas são muito superiores - e mais caras. Os instrumentos são caros já no país, importando ficam mais caros ainda. Fora os teatros, que são outro discurso. O melhor teatro daqui, que eu fui, é o de Ouro Preto. Quase sempre os teatros modernos da Europa são se boa qualidade: feitos com madeira e ferro, mas aqui no Brasil os teatros modernos são fracos de acústica. Faz parte da cultura não pensar no resultado da sonoridade no projeto arquitetônico. São todos umas caixas pretas. Os arquitetos não são muito sensíveis à necessidade acústica. Mesmo em Brasília, em obras do Oscar Niemeyer, são todos umas caixas pretas sem acústica. É triste, mas é uma característica brasileira.
Os músicos brasileiros são diferentes dos europeus?
Sim. Eles não escutam a música que vão tocar. Acho que porque têm outros empregos, não têm tempo. Hoje em dia eu também me dedico menos ao estudo da música, mas quando fui jovem eu passava 16 horas estudando e ouvindo a obra para tentar chegar à perfeição. Mas depois, trabalhando com insistência e afinco a orquestra chega a um bom nível. E esta tem uma particularidade: no momento das apresentações melhora muito.
De que forma o senhor demonstra que não ficou feliz com o resultado se a apresentação não lhe agrada?
Aqui não faço isso, mas na Europa, quando tinha a minha orquestra, após cada concerto fazia uma crítica e também mostrava uma gravação da apresentação para os músicos verem o que fizeram.
Acha que a OSMC tem chance de voltar a ser uma grande orquestra como foi no passado?
Não sei. O Brasil passou nos últimos dez anos por um grande crescimento de qualidade e quantidade de orquestras. Para crescer, historicamente, deve haver uma competição interna nas orquestras. Na verdade, em todas as profissões. Isso deve acontecer para haver crescimento. Quando a situação fica muito estável, sem nenhuma perspectiva de mudança, é difícil melhorar, crescer. Também porque sempre tem um ou dois que ficam para trás, acomodados. Precisa haver uma mudança de postura mental. Por exemplo, a Osesp é hoje uma das melhores orquestras porque o John Neschling fez um trabalho fantástico com os músicos. Ele exigiu dos músicos. Arte é exigência.
O senhor acha que os músicos daqui não têm motivação?
A motivação tem que ser a música. A motivação não vem de fora, mas os músicos não têm essa compreensão de que quanto mais a orquestra cresce, com todos trabalhando juntos, mais é conhecida e maior é a possibilidade de viajar. Uma coisa puxa a outra. É verdade o que você disse que a orquestra foi boa, mas é passado. Acho que o Benito Juarez fez um trabalho fantástico. Foi. Já passou. Hoje temos outra realidade, outras comparações. É diferente de 30 anos atrás. Alguns grupos de pessoas desta cidade falam muito de Carlos Gomes. Ele é um santo local. A curiosidade é que a cidade o renegou em vida. A pior coisa que poderia ter acontecido para um compositor recém-chegado da Itália foi o terem ignorado com suas óperas. E agora é um santo. É muito contraditório. Isso significa também não conhecer Carlos Gomes porque ele não fez música sinfônica, música camerística. Ele é um fantástico operista. E ópera o que significa? Significa teatro. Não sei mas acho que nunca montaram uma ópera dele aqui. Isso faz parte da questão da postura dos músicos. É também a postura da cidade, compreende? Campinas quer crescer olhando para o passado. É o que eu observo quando caminho, saio. Isso seria uma mentalidade provinciana. A orquestra faz parte desta mentalidade. Tem que haver uma luta de melhorar, um desafio. A gente precisa de desafios.
Publicada em 1/4/2010
Caderno C
Um olhar estrangeiro
Paula Ribeiro
DA AGÊNCIA ANHANGUERA
paula.ribeiro@rac.com.br
Click aqui e vejam as fotos do 1º Concerto da temporada 2010