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Dias atrás, estive, ou melhor, estivemos, Agostinho Tavolaro, presidente, Arita Pettená e eu, representando a Academia Campinense de Letras no IV Festival Internacional de Poesia. Local: Dois Córregos.
Uma diminuta urbe de apenas vinte e cinco mil habitantes, situada na área central do Estado e a cento e vinte quilômetros de Campinas. Indústria incipiente, comércio limitado, mas uma grande e generosa gente. Perante a estatística, apenas uma pequena localidade estacionada no tempo. Porém, aos olhos do visitante surpreendido, um admirável núcleo de inteligência e cultura.
Não se impressionem com o paradoxo da referência adjetiva, porque no modesto burgo se precipita um mistério, o milagre da transubstanciação que faz o grande caber no pequeno. Tanto que, desde a fundação, na crônica da cidade se concentra, ao sabor de história, um punhado de “estórias” e sagas que falam de perto à percepção afetiva do ser e à tendência criativa do povo local.
Ali, onde a brisa cicia lembrando romance, a poesia campeia no espírito do homem como o ar que se respira. Até a denominação — Dois Córregos — advém de uma concepção mística que faz da sua existência um poema de crença. Assim, diz a lenda que o fundador da cidade, José Alves Mira, homem de percepção política e muito ligado à igreja, tendo prometido ao povo a construção de uma capela que, servindo de consolo espiritual, estratificasse no núcleo a religiosidade citadina, viu-se de repente diante de um dilema — onde erguer o templo — já que entre os moradores, num jogo de opiniões, se erguera uma disputa em torno da localização do edifício.
Nesse arroxo, fala a crônica que, numa reunião em que os ânimos já se exaltavam, lhe sobreveio uma ideia providencial que ele, homem de crença, atribuiu à inspiração divina. Imitando a Salomão, para conciliar gregos e troianos, propôs preparar uma junta de bois que, solta livremente pela estrada, demarcaria no ponto em que estacionasse o lugar escolhido por Deus para a construção.
E assim aconteceu. Gemendo nos eixos, o carro pachorrento e abandonado — sem carreiro — impulsionado ao deus dará, atravessou modorrentamente a ponte sobre o Tietê, que já então existia, indo estacionar, ao guincho das rodas gementes, isento de qualquer aboio, numa área plana e verde situada entre dois córregos que caminham para o rio. Extasiado, o povo emocionado rezou genuflexo.
Cumprindo a promessa, ali, no lugar que a intuição santificara, Alves Mira ergueu a igreja — templo de fé e ara de oração que, ainda hoje, lá continua para glória de Deus e edificação do homem. Do homem que, acreditando na mística, canonizou a cidade com o nome da geografia — Dois Córregos.
Desde então, exemplo de sabedoria que ficou regendo a emoção e cadenciando o ritmo da vida, a saga prevalecesse como bússola da predisposição sensitiva da coletividade. Talvez, seja por isso que no pequeno burgo campeia a poesia como — “linguagem da alma” — que, diga-se ao ensejo, foi o lema do festival que, neste mês de maio, ali nos pagos, completou seu quarto ano de realização construtiva.
Conclave que, transcendendo os lindes nacionais, reuniu intelectuais de além fronteira, como Susan Andrews, psicóloga e antropóloga pela Universidade de Havard (EUA) e doutora em psicologia transpessoal pela Universidade de Greenwich, que veio dos Estados Unidos para falar sobre a busca eterna do homem — a felicidade — anseio de vida e lastro da poesia.
Também Luis Gilberto Caraballo (prêmio mundial Andrés Bello - 2009) locomoveu-se da Venezuela para velejar no evento, enquanto o gaúcho Carlos Nejar, ocupante da cadeira nº 4 da Academia Brasileira de letras, transportou-se de Porto Alegre para dissertar sobre a história da literatura no Brasil.
Por seu turno, Jorge Tufic, autor do hino do Amazonas, deslocou-se de Manaus com a mensagem do homem do norte, ao passo que do Rio caminhou Jorge Tannuri para dialogar sobre sonetos. Muitos outros se manifestaram, inclusive nós, gente de Campinas, para evidenciar que, irmã gêmea da música, a poesia filtra na mente os sentimentos que se aninham na alma e reproduzem, catalisantes na forma, o calor do afeto, a amplitude do amor e a grandeza da vida.
Agostinho Tavolaro que, na data, coincidentemente, completava mais um ano de matrimônio, serviu-se da sabedoria para dedicar a Ilze, ali presente, um comovente poema de amor. Arita, como sempre, grande poeta e declamadora, enalteceu a Guilherme de Almeida e dedicou à platéia poemas de sua lavra. Aplausos candentes.
Uma apresentação de gente de todas as tendências. Falou Frederico Barbosa — prêmio Jabuti (1993 e 2004) — diretor executivo de Polesis: Organização Social de Cultura que administra a Casa das Rosas, o Museu da Língua Portuguesa e a Casa Guilherme de Almeida. De outro lado, vencedor do Prêmio Jabuti de melhor livro infantil (2006), Gabriel, o Pensador desenvolveu com verve sua arte de dizer.
Ao traçar este relato que ressalta a magnitude cultural de uma ideia que transborda do pequeno burgo para o mundo, impossível é deixar de trazer a lume a força geradora do evento — o projeto Usina de Sonhos — em que se inscrevem os anseios de um personagem excepcional e seu idealizador, o empresário e poeta José Eduardo Mendes Camargo.
Figura profundamente humana que, desde longa data, vem-se dedicando ao bem coletivo e à felicidade de sua gente. E isso, que eu saiba, acontece desde 1996, quando conseguiu promover a 1ª Mostra de Cultura e Arte de Dois Córregos. Evento tão relevante que se projetou além mares, despertando o interesse da Unesco que, para melhor conhecê-lo, mandou então ao Brasil seu consultor de cultura em Paris. Um feito para ficar selado na história.
Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.
Publicada em 27/5/2010
Correio Popular
Rubem Costa
costa.rubem@uol.com.br